Das pequenas Mortes diárias
Natureza

Das pequenas Mortes diárias



 Cristina Troufa; Acrylic, 2011, Painting "Pedestal

A noite passada eu vi novamente o filme A menina que roubava livros, porque eu queria prestar mais atenção em alguns detalhes da filmagem e algumas falas, principalmente as que o narrador, a Morte, diz nos momentos finais da história. A mais intrigante talvez seja esta: "Está aí uma coisa que nunca saberei nem compreenderei - do que os humanos são capazes."

Os humanos realmente são capazes de coisas que até a morte se surpreende ou duvida, como o incrível poder de superação e de resiliência de algumas pessoas. Algumas sofrem tanto no decorrer de sua existência, mas vão em frente, resistem, buscam o lado luminoso da vida, reagem com garra, otimismo e conseguem viver muito, como foi o caso da personagem do livro, a menina, que viveu mais de 90 anos para contar sua história.

Porém, há os que são fracos, os que morrem cada dia absorvendo a mente com poluições que só fazem mal ao corpo, pois se não tivermos um perfeito domínio sobre isto, adoecemos ou vivemos morrendo a cada amanhecer.
Por isso estou na tentativa de não ser assim, tento espantar fantasmas da mente, tento viver os dias lendo e buscando, através do otimismo, não deixar que se instale em meus dias, o lado negro e desagradável dos pensamentos, que às vezes insistem em matar-nos um pouquinho.

"Quando a morte conta uma história, você tem que parar para ouvi-la." - Esta é mais uma das frases incríveis deste filme/livro - Por esta razão trago abaixo, um texto absolutamente incrível e inspirador para todos nós, a fim de combatermos com garra nossas 'mortes diárias'.
O texto é de Roberta Simão e está no Site Obvious, que transcrevo abaixo:



Ensaio sobre nossas pequenas mortes diárias


Há um mistério que intriga a maioria dos seres racionais desse planeta: a falta de controle sobre a nossa morte. Intelectuais e poetas sempre manifestaram sua admiração por este tema. Enxurradas histéricas de novas invenções tecnológicas são nossas cúmplices no sentimento cego de poder e controle sobre todas as coisas. Juntas e tacanhas convivem a era do controle, a era touch, a era glass e tantas outras histerias tecnológicas, que nos fazem sentirmos capitães das fragatas nas ondas da internet e de nossas vidas.
O fato é que muita gente já morreu alguma vez e nunca desconfiou disso. Inclusive você, não obstante eu. Porque a gente morre quando levanta da cama e já corre para olhar o celular. Morre de monotonia, de inércia, de marasmo, de falta de sonhos e de sonhos não realizados. A gente morre de medo de por o dedo em riste na cara do próprio medo e de pegar a coragem e seguir caminhando.
Morremos de medo de trocar hábitos, de mudar de ideias, convicções, de ver as coisas por outra perspectiva e damos um repeat automático nos comportamentos viciados e ranzinzas. Morremos de medo de olhar para o espelho da consciência e encarar os olhos nada atrativos das verdades de nossa alma, pois os reflexos geralmente são indigestos e desagradáveis. Morremos de medo de colocar em pratos limpos as mazelas de uma relação corroída, mas sustentada, apesar do visível desgaste, devido à insistência do amor que já não é mais o mesmo, mas que poderia voltar a ser ainda melhor se fossemos viscerais e honestos com nós mesmo e com o outro. Morremos na reincidência infinita de conhecidos ranços e defeitos, dos outros, e nossos. Morremos quando não somos coerentes com o que sentimos.
Chico Buarque já cantava sobre o tema em sua música Cotidiano: “Todo dia ela faz tudo sempre igual, me acorda às 6 horas da manhã”. Também na música Construção: “Beijou sua mulher como se fosse lógico. Ergueu no patamar quatro paredes flácidas. Sentou pra descansar como se fosse um pássaro. E flutuou no ar como se fosse um príncipe. E se acabou no chão feito um pacote bêbado. Morreu na contramão atrapalhando o sábado”.


Na verdade, vivemos cercados de óbitos commoditizados, sem cara nem desejos. E não sabemos de que forma sair de tão grande e paraplégica falta de competência de atitudes. Morremos de frio na alma e de falta de verdades. De amor encoberto e não depurado pela falta de coragem e por excesso de orgulho. De afeto endurecido e estancado. De gentileza não manifestada numa fala que deveria ser doce. Morremos de egoísmo e de falta de sensibilidade. Morremos de silêncios e escapismos. Não botamos para fora o que não nos agrada por medo de julgamentos. Morremos de preconceitos, de inveja, de ódios e opilações de fígado. E juramos que esses sentimentos, totalmente anti-civilizados e sem elegância, se manifestam e pertencem apenas aos outros. Também se morre de arrogância, de presunção, de soberba. Morre também quem permite que a paixão morra no sexo e que faz amor fingindo prazer, como quem come um mil folhas com o nariz completamente entupido.
Muita gente também morre de mediocridade. Pessoas que não são capazes de reconhecer o valor e os grandes feitos do outro. Sem saber que esta atitude só demonstra sua fraqueza comissiva de alma e que a mediocridade anda de mãos dadas com inveja. Muita gente morre de orgulho e nunca pensa na possibilidade de ceder. Gente que nunca conheceu a grandiosidade do ato de perdoar, do conforto de um abraço de perdão e do discurso sem máscaras.
Urgente! É preciso ter coragem e força de personalidade para olhar para dentro de si e, identificar essas pequenas mortes diárias. Fazer delas o combustível para catarses existenciais que melhorem cada um como ser humano. Que nos possibilite ver e ter uma vida com mais honestidade, ética, sensibilidade, poesia, densidade e amor. Ter a coragem de trocar nossas pequenas mortes de cada dia por sobressaltos cheios de cores, beijos úmidos e risadas altas, prontas para ocupar os palcos de uma vida mais verdadeira e se refestelarem soltas ao sabor do vento sem nenhuma amarra ou máscara. Vida longa e muito amor a todos que se dispuserem ao desafio.













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