Natureza
A volta da que não foi
Ah como é bom pedalar uma bicicleta, o vento no rosto, nos cabelos, uma sensação de liberdade e de tudo posso sobre duas rodas! Eu tinha uma dessas, rosa assim, com uma cestinha branca na frente, uma Caloi Ceci, zero marchas. Eu morava num bairro, tipo condomínio, numa cidade praiana e para me exercitar pós nascimento do filhote, ganhei uma, num aniversário qualquer de minha vida.
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Quando era criança, menina de uns 10 anos, louca pra ter uma só minha, pedi emprestada a do meu vizinho Wilsinho que era daqueles garotos bonzinhos e que vivia brincando junto às meninas, então era fácil trocar com ele qualquer brinquedo meu pela sua possante bike, bem mais alta que qualquer um de nós daquela turminha onde morávamos. A gente se revezava para dar 3 voltas na vila que tinha umas 10 casas e era fechada com um portão de ferro, mas pra nós parecia um circuito de Fórmula 1. A turminha da vila, composta mais de meninas que meninos, brincava junta e trocava brinquedos também, mas a bike do Wilsinho era o nosso maior objeto de desejo, quase ninguém tinha uma daquelas naqueles tempos.
E aí chegou a minha vez de montar aquela poderosa preta e prata. Meio desengonçada, consegui subir e meus pés ficavam boiando no ar, mas eu queria tanto pedalar aquilo e tentei uma, duas, três vezes ... consegui me equilibrar então, e fui de supetão, dando pedaladas vigorosas para mantê-la reta, mas ela rebolava e eu também, mas já na segunda volta eu consegui me aprumar melhor e depois na terceira, perfeita e confiante, mas aí já era hora de passar para outra da fila. Foi assim por muitas vezes naquelas tardes de verão carioca, quentes, mas muito menos quentes do que são hoje em dia e a garotada brincava até altas horas na vila, enquanto seus pais nos afazeres diários, as mães em casa e os pais nos seus serviços.
Mas, tinha aquela velha, a tal "Bruxa do 71", que nem era tão velha assim, tinha lá seus 60 anos, mas era o terror dos meninos da vila, pois furava bolas que caiam para dentro de seu terreno ou sentava-se para tomar
a fresca todas as tardinhas do lado de fora de sua casa, bem na curva onde a gente gostava de fazer a volta com a 'nossa' querida bike platinada.
E foi aí que eu me traumatizei, nunca mais peguei na bike do Wilsinho, só voltando a fazer muito mais tarde quando ganhei a Ceci rosinha e recomecei a pedalar pelo meu bairro praiano, tranquilo e totalmente favorável a este tipo de prazer para ficar em forma pós parto.
Ah sim! Como eu fiquei traumatizada com a bicicleta do Wilsinho?
A Bruxa do 71, ou melhor Dona Emília, sentou-se como de costume numa daquelas tardes, feitas pra nós, meninada cheia de brilho nos olhos e cabeças de vento, querendo o mundo e o mundo estava ali, naquela vila cheia de brinquedos e uma bike novinha se revezando entre nós.
Sentei-me com a dificuldade de sempre sobre o selim preto, endireitei-me, segurei firme o guidom, empinei-a e fui embora.
Fiz a volta lá no final da vila, driblei a dona Emília instalada em sua cadeira de couro e parti para a segunda volta feliz da vida, mas na terceira, tchibum! Dona Emília foi pro espaço, a bike também e eu, bem, eu saí correndo, desesperada e me tranquei no banheiro de casa, morrendo de medo do meu pai que estava pra chegar e iria saber da minha estripulia e, com certeza, iria me dar um castigo daqueles.
Esperei, sentada no vaso, claro, até ouvir a voz da Dona Emília reclamando com meu pai, logo na sua chegada do trabalho tendo que enfrentar a fera falando e ameaçando, pedindo que ele me punisse severamente. Ele a ouviu o tempo todo, ela falou de seu bico de papagaio que a incomodava todos os dias e que agora depois da minha batida em sua cadeira estava bem pior.
Pronto, tô frita, pensei eu!
Mas, meu pai que sempre foi muito justo e severo também conosco, surpreendeu-me naquela noite, pois fechou a porta, apagou as luzes, bateu na porta do banheiro e falou baixinho "Pode sair minha filha, não tenha medo."
Ele me abraçou e começamos a rir baixinho também, porque todo mundo achava a mulher muito chata e maldosa, minha inabilidade com a bicicleta foi meio que uma vingança coletiva. A meninada da vila estava vingada, mas eu nunca mais quis saber de bicicleta em toda minha infância. No dia seguinte eu não apareci na vila para ela pensar que eu estava de castigo.
Agora bicicleta só la na academia, para me trazer alguns benefícios cardiovasculares, fortalecer minhas perninhas e ajudar a perder uns pesinhos que carrego e me incomodam.
Hoje percebi enquanto dirigia ao lado de uma ciclovia, o quanto é perigoso andar de bicicletas nessas ruas lotadas de carros, onde ninguém está preocupado com a segurança do ingênuo ou romântico ciclista brasileiro que insiste em circular nestas pseudo-ciclovias construídas em espaço limitado para o dito cujo pedalar bem junto daqueles que passam sem o mínimo respeito.
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