Natureza
A Gracinha de todas as semanas
Ela chega cedo, um pouco antes das 7 da matina, sempre esbaforida. Assim que abro a porta e dou meu habitual bom dia, ela responde e entra como um furacão cozinha a dentro. Vai direto para a varanda dos fundos, abrindo a porta que dá para a cozinha e olha pro céu reclamando do tempo que tá ruim e chuvoso. Gosta de armar a tábua de passar roupa ali na varanda e despreza a bonitinha e bem arrumada que fiz na área de serviço.
Conta que sentiu um frio arretado esta noite e que já estava ficando gripada, mas sua roupa não condiz com o tal
frio que diz estar sentindo. Alcinhas de um tubinho preto agarrado e curto sobre uma bermuda preta acima dos joelhos e sandálias pretas também, que dei-lhe faz tempo e que adora, está sempre com ela faça verão, outono ou inverno. Diz que nunca calçou uma bota e nem saberia usá-la, mas fico pensando como ela ficaria engraçada de botas cano longo, sendo tão baixinha e redonda.
Eu já tentei oferecer -lhe um par de botas para dias frios, mas ela recusou-as, dizendo que não conseguiria usar aquilo. Nem insisti muito, porque este pseudo inverno carioca, principalmente para os que moram na baixada, lugar sempre aquecido, não tem nada a ver com botas e cachecóis. Um simples casaquinho de moletom leve já funciona muito bem nos dias mais friozinhos. E tirei um de meu guarda roupas e dei-lhe de presente antes de ir embora no final da tarde.
A esta hora da matina meus neurônios "Tico e Teco" ainda imploram pela cama e o escurinho do quarto, volto então para a cama por mais 40 minutinhos, mas não fico à vontade sabendo que tem alguém na casa cuidando para mim e eu lá enroladinha debaixo das cobertas.
Ela sempre começa pela roupa, passa bem e com uma rapidez de dar inveja a quem não tem habilidades com um ferro de passar roupas. O que não é o meu caso, pois sei passar muito bem roupas, aprendi com uma amiga de infância que quando viu certa vez o meu modo de passar uma camisa, riu da minha cara e pegou a mesma de minhas mãos, ensinando-me o passo a passo correto para deixar uma camisa bem passada e sem ruguinhas. Treinei com ela e aprendi tudinho, sei fazer direitinho, mas vou te contar ... ô coisa chata ficar ali, em pé, passando uma, duas, três camisas e se for de homem ainda por cima, não é mole!
Aqui em casa a roupa basicamente é pouca para passar e as camisas sociais do maridex é que são em maior número, mas nunca passam de cinco na média, o restante compreende minhas roupas e algumas de cama e mesa, tudo coisa simples, sem engomação e frescurites. Ela leva em média, umas duas horas e meia para passá-las e depois eu as penduro e guardo nos lugares certos. E ela ainda faz o café da manhã e toma-o sentada, comendo um ou dois pães franceses que sempre compro na véspera para não deixá-la sem esta primeira refeição. Depois o cigarrinho básico, lá na varanda, porque já disse que dentro de casa não dá, ninguém fuma por aqui.
A limpeza do apartamento acontece de maneira gradual e sempre repetida todas as semanas. Ela já tem intimidade com os recantos, já sabe onde precisa de mais um cuidado que não foi dado na semana anterior e eu estou sempre em casa nos dias em que ela vem, principalmente porque sou a 'arrumadeira'; depois que ela aspira, espana, limpa o piso com álcool e desinfeta, meu serviço entra em ação, ou seja, tudo vai pros lugares e assim pouquíssimos objetos foram quebrados até hoje nestes quase 4 anos em que ela trabalha para mim.
Entre uma limpadinha e outra, conta os casos de família, problemas com a filha que teve bebê prematuramente e que eu já contei aqui, e da inabilidade ou falta de amor que a menina tem para cuidar do filho, sacudindo-o quando chora, totalmente sem paciência. As idas noturnas para bares da comunidade carente em que mora e com um bebê de poucos meses nos braços, passando quase a noite inteira.
Eu converso, oriento, dei-lhe mais um aumento inclusive na semana passada, dou algumas coisas pra ela e pro bebê, mas tenho receio de me envolver mais do que isso.
Ela é a Gracinha, minha faxineira, pessoa simples, sofrida como tantas outras que vemos por aí nas manhãs em pontos de ônibus ou vans das grandes cidades. Sua sabedoria está no esforço e caráter digno para manter seu trabalho sem precisar pedir esmolas ou bolsas disso e daquilo, e eu, por outro lado, preciso de sua mão de obra e ajudo-a a manter sua família com o emprego justo que lhe ofereço. Emprego este que ela diz manter com muita satisfação, pois pelo menos recebe em mãos, totalmente líquido, sem descontos, coisa que não aconteceria se trabalhasse em algum comércio por aí, fora os presentes que volta e meia lhe dou. É uma mão que lava a outra.
Ela diz gostar muito de mim e fala isso para sua família. Fico feliz em saber disso, pois nossa relação é também de muita troca de experiências e algumas risadas em certos momentos do dia.
E lá se vai a Gracinha com um casaco de moletom, um mimo simples, dado de coração e que amenizará o friozinho que a espera no ponto de ônibus desta tarde, depois de mais um dia de trabalho honesto em sua difícil vida.
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