Natureza
Lembranças e saudade companheiras.
Dizem hoje em dia, que relembrar o passado não é coisa boa, que é mania de velho, que devemos viver o hoje e esquecer tudo o que passou e fazer do momento presente o mais importante de nossas vidas. Será mesmo!?
Sei não! Como poderei enterrar minhas lembranças mais queridas e até mesmo as mais doridas se sou feita delas e as mesmas agora, me fazem feliz ao relembrar. Simplesmente porque foram momentos únicos, tão meus e tão queridos, afirmando que tive amigos, família, vida com conforto e carinho, comida na mesa, escola e lazeres. Foi a vida que Deus me concedeu e que eu trilhei e fiz escolhas, algumas não deram certo, mas posso garantir que a maioria delas me foram proveitosas.
E porquê estou falando sobre lembranças agora? Por que noutro dia, ao entrar numa dessas novas salas de cinema, até confortável em comparação com algumas por aí, lembrei-me da inexplicável sensação de como eram as salas de cinema nos anos 70, aquelas grandes, com cortinas de veludo e chão de tapete macio, onde os pés afundavam ao andarmos e, se já estivesse escura a sala, um lanterninha nos acompanhava com a luz azul iluminando nosso caminho até a poltrona vazia. Era um ambiente completamente diferente do que vemos hoje e que os mais jovenzinhos nem têm ideia, já nasceram e cresceram vendo películas nestas salas, embora tenha algumas incríveis, com cadeiras super confortáveis, com lugar para o mega pote de pipoca e o blaster copo de refrigerante. E ainda tem o som supersônico de arrasar quarteirão, o suficiente para deixar qualquer um surdo de uma vez por todas com estes filmes épicos, de ficção ou aventura. Noutro dia, num simples trailler de um tal Hércules, quase tive que ir direto para o otorrino. Era só barulho ou grunhidos no mais alto grau.
Como não lembrar com saudade daqueles cinemas da Tijuca, o maior deles talvez, o Cine Metro Tijuca, com seu ar condicionado perfeito e a abertura do Canal 100, mostrando nossos jogadores mais talentosos em closes inusitados de suas pernas, das torcidas nos estádios, tudo embalado pelo sambinha de fundo que todos se animavam antes do filmes, "Que bonito é...!"
E tinha um breve noticiário, das coisas que estavam acontecendo pelo mundo afora e que chegavam pra gente com um certo atraso de tempo, mas nada que nos fizesse ficar fora do ar ou perdidos no tempo. Lembro-me de um avião enorme que vinha se aproximando da tela e, de repente, alçava voo sobre as nossas cabeças, sem 3D, com a mais simples emoção do que a tela grande proporcionava.
Invariavelmente, eu me abaixava na poltrona, boba que nem só!
Saindo dali, o must era ir tomar milk shake ou sundae de chocolate no Café Palheta, reduto dos playboyzinhos e patricinhas da época.
Lembranças não são ativadas só nos mais velhos, e prova disso é que esta semana, duas jovens que moram fora do país, comentaram, emocionadas, num post que fiz no Facebook, mostrando apenas uma imagem e perguntando se alguém conhecia aquela frutinha. Uma dessas amigas, chegou às lágrimas com a saudade que sentiu, ao relembrar sua mãe, fazendo sempre para a família, o doce daquele fruto, o Cupuaçu, que os nortistas conhecem bem e lembram de seu sabor pro resto dos seus dias, um sabor atávico, de lembranças doces e emocionantes. Como o tempo passa rapidamente, os mais jovens já têm saudade de suas lembranças também.
Eu quero lembrar sempre dessas coisas boas que ficaram em minha vida. Quero lembrar, quando fecho os olhos e busco na memória olfativa, o sabor adocicado do pão doce vendido na porta de casa por um padeiro; quero lembrar das flores que meu pai trazia aos finais de semana para enfeitar nossa casa; quero lembrar de músicas que embalaram meus sonhos de adolescente aos sons dos Beatles e Rolling Stones; quero lembrar do cheirinho do pó de arroz Promessa e batom Helena Rubinstein que minha mãe usava ao sair conosco para passeios nos finais de semana; quero lembrar da sala de aula do primeiro colégio, as carteiras em madeira, duplas, compartilhada com um coleguinha; do cheiro do material novo do início de ano letivo; da minha pasta de couro e dos meus lápis de cores lindos, dentro de uma caixa especial; lembrar de um sapato de verniz, estilo boneca, na cor do sorvete Kibon de creme que eu adorava; lembrar de uma ida à praça principal do bairro que tinha um lambe-lambe e que fez algumas fotos bizarras da família, meu irmão com os olhos arregalados, minha irmã com cara de sono, segurando uma boneca que tinha ganhado no Natal e eu, também segurando minha boneca natalina e usando uma saia com manchas preto e brancas, lembrando uma vaca malhada, uma coisa horrorosa, mas que eu achava o máximo na minha ingenuidade infantil com meus cabelos fininhos arrumados num permanente que minha mãe insistia em fazer nos meus cabelos escorridos e sem volume; lembrar do primeiro telefone preto e pesado da casa de meus pais; da televisão com caixa enorme em preto e branco que causou enorme espanto e magia entre todos nós; lembrar dos lotações e dos bondes e da gentileza que permeava as relações do povo carioca naqueles velhos tempos. Saudade infinita e boa!
Tantas lembranças, tantas emoções, parecendo mais aquela música piegas do Roberto Carlos, mas que eu não vou deixar de lembrar com carinho enquanto viver, são mágicas e risonhas, pois as coisas tristes eu tenho a capacidade de não relembrar, parecem que não existiram ou foram deletadas desta maravilha que é meu cérebro. As boas lembranças, em determinados dias, são como um rio caudaloso, escorrendo pra dentro de mim mesma, fortalecendo minha gratidão eterna pelas graças recebidas.
Cenas infantis da página Les Anées, Facebook
'' Hoje ando melancólica e suspirosa.
Choveu muito, a água invadiu este porão de lembranças, boiam na enxurrada a caminho do rio.
Deixo que naveguem, pois não as perderei.
O rio é dentro de mim. ''
Adélia Prado
E, por falar em escurinho no cinema, ouça esta versão deliciosa:
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