Relatório divulgado por entidade liderada por Kofi Annan, ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas, revela que a cada ano o aquecimento global mata 315 mil pessoas e custa US$ 125 bilhões
É um mal silencioso, que assume as formas da fome ou de doenças, mas também se esconde nos ciclones, enchentes e ondas de calor. Impiedoso, ataca principalmente a população mais miserável do planeta. Pelo menos 315 mil pessoas já morrem ao final de cada ano e 325 milhões sofrem os graves efeitos de uma catástrofe em marcha. Os prejuízos anuais se aproximam dos US$ 125 bilhões. Dos 6 bilhões de seres humanos, 4 bilhões estão vulneráveis — 500 milhões deles enfrentam risco extremo. Mais de 12 milhões de pessoas foram arremessadas pelo aquecimento global na situação da pobreza. O clima é o responsável por 26 milhões dos 350 milhões de refugiados no mundo.
Apenas algumas das conclusões do Relatório de impacto humano: Mudança climática — a anatomia de uma crise silenciosa, publicado ontem (29/5) pelo Fórum Humanitário Global, são suficientes para alertar o mundo, às vésperas da Conferência sobre o Clima de Copenhague, que ocorre entre 6 e 18 de dezembro e terá o propósito de abrir caminho para um tratado que sucederá o Protocolo de Kyoto.
Em 127 páginas, o estudo divulgado pela organização internacional presidida por Kofi Annan, ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), e sediada em Genebra, é o primeiro documento a revelar, com detalhes, o impacto das mudanças climáticas no planeta e a advertir sobre os riscos da inação. “Até o mais ambicioso acordo climático levará anos para desacelerar ou reverter o aquecimento global. (…) As emissões estão crescendo de forma sustentável, e a população mundial deve aumentar em 40% até 2050”, sublinhou Annan, na introdução do relatório. “Se não revertermos as tendências atuais até 2020, poderemos ter falhado”, acrescentou o ganense.
Annan define a mudança climática como “uma crise humana silenciosa” e o maior desafio humanitário emergente da atualidade. O relatório admite ser desafiador o isolamento do impacto humano da mudança climática de outros fatores, como variação natural, crescimento populacional, uso da terra e governança. “Em muitas áreas, a base de evidência científica ainda não é suficiente para se fazer estimativas definitivas com grande precisão sobre os impactos humanos da mudança climática. (…) Esse relatório, baseado no mais confiáveis dados científicos, projeta o número de pessoas seriamente afetadas, vidas perdidas e perdas econômicas devido à mudança climática”, afirma o texto.
Justiça global
O estudo confirma a vulnerabilidade física e socioeconômica das populações mais pobres do planeta. “É uma grave preocupação de justiça global o fato de que aqueles que mais sofrem com a mudança climática têm feito menos para provocá-la. Os países em desenvolvimento carregam nove décimos da carga da mudança climática: 98% dos seriamente afetados e 99% de todas as mortes relacionadas a desastres meteorológicos, com 90% do total de perdas econômicas”, alerta o relatório.
Para o neozelandês Kevin Trenberth, autor de um dos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, pela sigla em inglês) e cientista do Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas (Ncar) dos Estados Unidos, o cálculo de 300 milhões de pessoas afetadas pelas mudanças climáticas foi subestimado. “O clima está mudando a partir das atividades humanas, e todas as pessoas já são atingidas”, afirmou ao Correio, por e-mail.
O meteorologista vê duas opções para o planeta lidar com o problema: parar ou desacelerar o fenômeno ou simplesmente reconhecer sua existência e se preparar para ele. Trenberth reconhece que a mitigação é uma parte do problema, mas não a solução. “A adaptação (planejamento) é essencial”, explica. A omissão custaria caro. “Os conflitos humanos e a perda de vidas aumentarão, decorrentes de um parco planejamento”, prevê Trenberth. Pelo menos 40% dos confrontos em todo o globo estão ligados a disputas pelos recursos naturais, segundo o relatório.
O dinamarquês Soren Peter Andreasen dirigiu a produção do relatório do Fórum Humanitário Global. Cientista social do Dalberg Global Development Partners, ele afirmou ao Correio, por e-mail, que os governos precisam assinar um acordo global que limite as emissões de gases do efeito estufa. Também previu impactos consideráveis nas populações mais vulneráveis do planeta. Andreasen não considera o Brasil no topo da lista de risco, mas admite que o país já sofre os efeitos da mudança climática.
Como os senhores chegaram aos números do relatório?
Essas estimativas se baseiam em dois componentes principais: o primeiro são as projeções de impactos na saúde relacionadas à degradação ambiental provocada pela mudança climática. Elas se baseiam no estudo Carga global de doenças, da Organização Mundial de Saúde. Esses impactos serão a fonte da grande maioria das pessoas afetadas e das mortes em 2010. É bastante preocupante o aumento da desnutrição, diarreia e malária no mundo em desenvolvimento. O segundo é uma análise do aumento na frequência de desastres relacionados ao tempo, como enchentes e tempestades desde 1980.
De que modo seria possível evitar uma catástrofe humanitária?
O passo mais importante a ser tomado a longo prazo precisará ser dado pelos governos: a obtenção de um acordo para um tratado global que limite as emissões de carbono, durante a cúpula em Copenhague, em dezembro. Investimentos em políticas que protejam populações vulneráveis podem definitivamente também ajudar a lidar com esses problemas a curto prazo. Tais investimentos são quase sempre chamados de "adaptação climáticas",
É possível estimar o número de pessoas desalojadas por causa das mudanças climáticas? Essa situação pode provocar um colapso econômico em alguns países que receberiam imigrantes?
Uma estimativa das "pessoas desabrigadas pelo clima" sugere que mais de 25 milhões estão sem suas casas. A Organização Internacional sobre Migração divulgou hoje um relatório sugerindo que o número passará dos 200 milhões até 2050. Pelo menos 12 nações insulares do Pacífico introduziram uma resolução — que deve ser aprovada na Assembleia Geral da ONU — ligando as mudanças climáticas à segurança internacional. Algumas ilhas não serão mais locais viáveis, devido ao aumento no nível do mar. A escassez de água e a erosão costeira também podem forçar multidões a migrarem, potencialmente provocando tensões nos países de destino.
Quais países sofrerão mais perdas econômicas, graças às mudanças climáticas?
Uma significativa partilha dessas perdas impactará países que já são vulneráveis a doenças, pobreza e desastres. O Sul da Ásia e a África Subsaariana são particularmente vulneráveis. Mas os países desenvolvidos e as economias emergentes também estão expostos aos efeitos econômicos, particularmente onde os recursos hídricos são escassos e os grãos não são mais fontes viáveis de agricultura. A Austrália é uma exemplo de país que tem sofrido muito com a seca na última década. A Califórnia é outro exemplo de área exposta.
Como o Brasil se apresenta nesse contexto?
O Brasil não está entre os países mais vulneráveis. Mas o país está certamente exposto aos efeitos da mudança climática. As principais áreas expostas ao impacto humano da mudança climática incluem as lavouras, a escassez regional de água e doenças provocadas por vetores, como a malária. A mudança climática funciona como multiplicador dos desafios e riscos existentes para o desenvolvimento nessas áreas. Também há complexas relações entre os riscos provocados pela mudança climática e o desmatamento.
Se a humanidade pretende evitar esse cenário de catástrofe, o que é necessário fazer?
Os impactos humanos discutidos no relatório não são irreversíveis. Mas por um longo tempo nós teremos de aprender a como lidar com eles. Mesmo se as emissões de carbono forem reduzidas de modo significativo, os efeitos de aquecimento das emissões passadas permanecerão por décadas. A única solução viável a longo prazo é limitar as emissões. Durante a coletiva de imprensa no lançamento do relatório, Kofi Annan convocou todos os grandes emissores — EUA e União Europeia —, além de China, Índia e Brasil a unirem forças em um acordo climático global. A ligação entre crescimento e desenvolvimento sustentável foi destacada como um dos desafios atuais da comunidade internacional.